Um ronco grave e
sincopado habita a memória dos apaixonados por caminhões pesados. O som,
orquestrado pelos pistões que tinham uma câmara de explosão em formato
diferente, marcou o motor seis cilindros dos caminhões FNM. A robustez
do motor e o ruído estralado, vindo de trás de uma lataria de visual
sisudo, fez do Fenemê um clássico absoluto das estradas brasileiras.
Lembrados como possantes, fortes e estradeiros, os veículos produzidos
na fábrica de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, ainda despertam
curiosidade e paixão por onde passam.
Eles tinham cara de
mau e de fato eram. A força sempre foi a marca registrada dos Fenemê.
Criada por Getúlio Vargas, a Fábrica Nacional de Motores (FNM) começou a
ser construída em 1940, destinada a produzir motores aeronáuticos para
uso militar. O fim da Segunda Guerra Mundial tornou os motores obsoletos
quando a fábrica finalmente iniciou a produção, em 1946. Após fabricar
geladeiras, compressores, bicicletas, entre outras coisas, a FNM apostou
nos caminhões em 1949. O primeiro flerte com os pesados foram as 200
unidades de um modelo diesel de 7,5 litros, fruto da parceria com a
italiana Isotta Fraschinni.
Após
dificuldades financeiras na parceira, novo acordo foi firmado com outra
italiana, a Alfa Romeo. Começa aí a trajetória de sucesso dos caminhões
da marca. Os primeiros modelos, produzidos em 1951 e vendidos a partir
de 1952, foram denominados D-9.500, equipados com motores de 130cv e com
uma capacidade de carga de 8.100 kg (aumentada para 22.000 kg se
acoplado a uma carreta de dois eixos) - números normalmente extrapolados
na época. Além de ser capaz de puxar muita carga, era o único caminhão a
possuir cabine leito com duas camas, ideal para enfrentar longas
viagens nas torturantes estradas brasileiras de então.
Vieram os modelos
D-11.000 em 1958, com potência de 150 cavalos, que ao lado do D-9.500
atingiu sucesso absoluto de público. Em 1968, a fábrica foi
definitivamente vendida à Alfa Romeo - numa das primeiras privatizações
do País -, que seguiu produzindo os modelos 180 e 210. No ano de 1976, a
Fiat comprou a maior parte das ações assumindo o controle da fábrica e
passando a produzir os modelos Fiat 190. Em 1985, já administrada pela
Iveco, com o declínio nas vendas, a fábrica encerra suas atividades no
Brasil, declarando o fim da fabricação dos Fenemê. Ao longo de todas as
fases, a empresa produziu aproximadamente 15 mil veículos.
Os sobreviventes
Embora com mais de
meio século nas costas, não é impossível ver um destes caminhões rodando
pelas estradas brasileiras. E, por onde passa, a comoção é grande. É o
que garante um grupo apaixonado pelos FNM, que realizou no ano passado
uma viagem do interior de São Paulo a Salvador, na Bahia. “As pessoas
batiam palmas nas cidadezinhas que passávamos. Em Salvador, um cara
parou o carro no meio do trânsito, subiu no estribo da carroceria e
mandou acelerar para ouvir o ruído”, conta Ito Buhrer, funcionário
público e ex-motorista nos anos dourados de FNM.
A história da
viagem começou com Osvaldo Strada, um empresário conhecido por ter uma
das maiores coleções de Fenemês do Brasil. Ao todo, são 20 unidades, que
contam a trajetória da marca, com modelos de diversos anos, tipos de
cabine e caçamba. Em uma chácara no interior de São Paulo, Strada criou
um espaço para guardar e restaurar as relíquias. Filho de alfeiro - como
chamam os motoristas destes possantes - ele não consegue explicar a
paixão que os FNM despertam. “É uma coisa meio para doido, também tento
entender esse amor e não consigo”, revela.
O mesmo acontece
com outro filho de alfeiro, José Reinert. “A diferença dos Fenemê para
os outros caminhões é a potência e a robustez, na época era bem gritante
a diferença, ele tinha muita capacidade de carga, chassi forte, motor
lento e muito reduzido, então puxava bastante peso”, destaca Reinert.
“Por ele ser reduzido, dificilmente atolava. Quando algum outro caminhão
encalhava ele era usado para puxar, como se fosse um trator”, diz.
Outro que enfrentou
a tradicional rota pela BR-116 até Salvador foi Ito Buhrer. Aos 18
anos, seu Ito comprou o primeiro Fenemê. Ele conta que a velocidade
máxima de 38km/h não fazia diferença, pois nas estradas brasileiras da
época era difícil chegar a isso. “De São José dos Pinhais, no Paraná
onde eu morava, até Joinville, em Santa Catarina, a distância era de
120km. Os caminhões saíam de manhã cedo e chegavam lá à noite, isso
quando a estrada estava boa”, relata Buhrer.
A viagem histórica
de janeiro de 2011, entre São Paulo e Bahia, envolveu três modelos: um
FNM Brasinca 1961 trucado, um FNM Standard 1964 cavalo mecânico na
tradicional cor verde seda e um FNM Standard 1965 trucado. Embora sem
conseguir explicar sua paixão, Osvaldo Strada destaca uma das qualidades
dos FNM: “Os Ford eram a gasolina e os Fenemê a diesel, então o
caminhão tecnologicamente tinha tecnologia de ponta, com muita
capacidade de carga. Você acha FNM de 1955 rodando, mas não acha Ford
deste ano”, conta. “Não sei se é hobby ou loucura, pois a linha que
divide um lado e o outro é muito tênue, mas, para nós, caminhão existe
antes e depois dos Fenemê”, conclui.